Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

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~ La Nausée II ~

Quinta-feira, 15 de Julho
O milénio está a morrer. Sentem-se os últimos suspiros, soprados cuidadosamente pela garganta ressequida. Faltam menos de seis meses, e a contagem continua. Por todo o lado, o impacte começa a notar-se, como o choque frontal de dois carros em câmara lenta.

Brinquedos adornam as lojas, formas do futuro: naves espaciais, plataformas, estações de transbordo orbital, homenzinhos em fatos de pressão sentados nas proverbiais cadeiras da NASA. Mas, por muito previsionários que queiramos ser, ficamos sempre constrangidos pelo que conhecemos e não conseguimos abandonar. Bastaria olharmos para uma pequena porção na superfície dos brinquedos para descobrirmos a prova mais evidente: um rectângulo representativo da bandeira de um país, a maioria das quais americanas, soviéticas e francesas. Etiquetas que revelam a conquista da derradeira fronteira por porções definidas da humanidade. Ridículo. Se, de facto, formos lá para cima, será como resultado da cooperação. Entreajuda mútua e esforçada. Será essa a verdadeira conquista, não a outra.

Milénio. Tanto que comporta, e tão pouco. Comportou o nascimento de muitas nações e a queda de outras. Várias etapas da civilização, ditas eras ou idades, quando a civilização era somente a pequena península agarrada à Ásia e que se estende até Portugal. Redescobriram-se rotas que gentes mais antigas haviam percorrido mas mantido ern segredo; a civilização alargou-se. Dois países detiveram o mundo, metade para cada um, neste milénio; e agora, o mundo não é de ninguém.

Toco na casca áspera de um melão, à venda na rua, exposto em caixotes duma mercearia escondida na dobra de um bairro, na dobra de um tempo. O dono é velho e enrugado, e não vê que as coisas se transformam. As rugas caem-lhe sobre as pálpebras, encerram dos olhos a mudança do mundo. Fechou-se na sua própria intemporalidade, e como tal, perdeu-a. A casca toca nos meus dedos e diz: estou aqui. E tu?

A mudança de século está patente nos discursos, também. Na elegia dos movimentos. Parecem mais soberbos, mais dignificados. Mil novecentos e noventa e nove ficará para trás, com todos os erros que se cometeram e dos quais não nos conseguíamos livrar. O novo ano do algarismo par seguido do comboio de zeros será o ano de recomeço e da retentativa. Como magia, na passagem de um segundo (o último) para outro (o primeiro), as culpas serão perdoadas, e a cabeça escorrerá água benta pelas curvas do dorso.

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Discursos de rua, e discursos de parada. De TV, feitos de palanques. Promessas e enganos; encantos?

Estranho. Sinto ainda o beijo seco, a textura da fruta. O sentido. Estás aí. Sabes que aí permaneces. E eu?

O que sinto eu?

Na rua, atravessando a estrada. Os carros buzinam, um até derrapa. Passa de raspão pelas minhas pernas. Não me afasto, não me desvio. O condutor lança o punho de fora e faz um gesto rude. Sexo. As pessoas olham, comentam. Subo para o passeio do outro lado, e o muro de transeuntes abre uma brecha para me deixar passar. Sinto o toque das suas roupas, da carne dos braços desnudos nos meus. Devem julgar que estou drogado; bêbado; que sou um punk: Neoshit walking down the streets wearing the face mask of manhood. Sexo. Conceitos fálicos.

Discursos. Provoquei discursos na rua. Quebrei o silêncio do muro, e os tijolos começam a comunicar; deixam de ser tijolos, tornam-se entes vivos, ganham identidades próprias. Eles são. Eles existem, sabem que são. O tempo passa. Segundos caem. Vazio. Estás aí. Onde estou eu?

Terça, 17 de Agosto
No bar, perto de casa. Película cinzenta de fumo envolvendo as mesas e os espaços entre. Galhofa dispersa, mas concentrada. Pequenos grupos de difusão. Penetro invisível no nevoeiro, e com ele me confundo. O barman já me conhece. Peço o habitual e ponho-me a apreciar o cenário.

No século XIV, não havia electricidade. Logo, não havia uma tecnologia electrónica desenvolvida. Os serões eram passados a ouvir o dedilhar natural de pele sobre cordas finamente esticadas, lançando os sons na concavidade das caixas-de-ressonância, para aí se reproduzirem e multiplicarem, no sentido bíblico. Os pobres deitar-se-iarn cedo, estafados de mais um dia de colheita e de irem pilhar às lixeiras das igrejas, ou punham-se a olhar atordoados para as fogueiras de paus secos e a contarem as misérias do dia. Foder também não demoraria; mas essa era outra questão. Antigamente, as pessoas ainda tinham o direito de errar, porque tudo era novo e inexplorado. Agora, a própria música é depurada até à exaustão para retirar quaisquer vestígios de ruídos e vibrações incómodas. O erro é eliminado; só resta a perfeição, a monótona e repetitiva perfeição. O ritmo é tratado em dezenas de pistas paralelas, até formar um som único, longo, seco. Torna-se tão complexo que o ouvido acaba por desistir e concentrar-se no barulho ambiental, bem mais terra-a-terra. Aqui, esse barulho consegue ser mais elevado que a música de fundo. É ele a própria melodia, demarcando o compasso com que as coisas interagem.

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Referências e Textos Relacionados

Autor:
Luís Filipe Silva

Textos:
O Futuro à Janela: Estudo da Obra e da Ficção Científica Portuguesa Actual
Jorge Candeias fala de O Futuro à Janela, de Luís Filipe Silva

Na Web:
O Futuro à Janela (Mediabooks)