Por se comemorar este ano o centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre, o eminente filósofo e autor francês que baptizou a angústia da existência, disponibilizo, por tempo limitado, a minha resposta à descoberta do existencialismo e de como me influenciou a juventude. Eis a continuação de um livro publicado em 1938, numa outra era, mas muito actual. Este mesmo conto tem quase quinze anos de idade, e como afirma o Jorge Candeias numa crítica à antologia O Futuro à Janela, onde habita disfarçadamente, o tema ainda era ficção científica quando foi escrito. Agora pode ser considerado história alternativa. A classificação é-me indiferente e bastante irrelevante. É-me tão impossível entrar no mundo em que foi escrito, o mundo dos meus vinte anos, quanto seria entrar no que é aqui descrito. Ambos são fantasia, agora. Talvez sempre o tenham sido. (LFS, Junho 2005)
Sexta-feira, 30 de Abril
Hoje, Paris esteve deserta. Sobrevoou a cidade um gigantesco pássaro de fogo com a voz irada, e os habitantes, vendo-o, e mais, sentindo-o penetrar até às camadas inferiores da carne, fugiram do seu bafo; estavam repletas, as ruas e as carreiras públicas de transporte, de gentes que escapuliam ao calor para irem ao encontro dos seus refúgios de descanso predilectos, cedo de madrugada. A transbala, cujo terminal se destacava na margem sul, deglutia continuamente centenas de transeuntes, para depois ser lançada no ar por meio de um acelerador, e tomar urna rota com precisão milimétrica. Ficava em pânico, sempre que via um conjunto de carruagens aproximar-se do Sena. Não tinham asas, não tinham motores, não tinham hélices, nem sequer tinham pilotos. Não havia madeira nenhuma de serem comandadas, uma vez no ar. E se houvesse qualquer falha?, surgia espontaneamente no espírito. Se o alvo é errado e não conseguem enfiar-se pelo túnel, que as espera como uma enorme bocarra, erguida para defrontar a Torre? Diziam que entrar numa transbala é dar um aperto de mão ao destino. Bem os compreendia.
Não foi o calor o único motivador para a deserção da capital. Houve uma paragem generalizada por causa do feriado. Um acontecimento como nunca na vida. Andei, pela primeira vez, à vontade, pelos Campos Elísios, pelas ruas, pelos cafés, sem ser acotovelado, sem cruzar com mais que uma dúzia de rostos antipáticos. O underground parisiense, éternel, manifestava-se num café de esquina, junto ao hotel: dois rapazes, com boinas de pintor, dedilhavam uma melodia sobre o tema imortal da paixão e do abandono. Parei para ouvir, tomar uma bica e a inevitável madeleine. Esta não me traria memórias; antes, seria o conduto da sua formação, assumindo a forma de uma chave que liberasse aqueles exactos segundos, aquela atmosfera, e o gosto da música, aquela sensação dura da cadeira de ferro, agradavelmente fresca, contra as minhas costas. Um pequeno bolo, um odor, tornaram-se guardiões de um dos raros momentos da minha vida a que posso chamar de belos. Encerrado num recanto privado da minha memória, a quem mais ninguém terá acesso. O seu brilho, que se desvanece com o tempo.
Voltei para o hotel. Estava mudado. Algo me tocara. Uma consciência. Estar alerta; permanecer acordado. Como ter alguém ao nosso lado, a bater-nos no ombro e a apontar: "Olha para ali. Vê. Vê." Passei pelo café de noite para tomar uma cerveja, ainda embalado na suavidade do ambiente vespertino; mas pelas dez horas reinava um nevoeiro de fumo de tabaco, de arrotos azedos, e uma monotonia insipiente de palavras trocadas em voz alta e barulho generalizado. Desagradável. Perigoso. Voltei para o quarto, sem beber nada, e pus-me a tocar Lou Reed. City-lights flowing through my bedroom window. Não propriamente o que ele cantava, mas um título conveniente para o que eu sentia. A combinação da guitarra acústica com a selva de cimento pontilhado de estrelas de silício rectangulares, seccionadas abaixo do pescoço pelo beiral da minha janela, fez-me retornar a Nova Iorque. Fez-me ter saudades; o que era incongruente, pois saudades é um termo português. Para os anglófonos, trata-se de uma doença. A doença-do-lar.
O calor continua e não consigo dormir. Estou de candeeiro aceso, a martirizar estas folhas brancas com palavras vãs, e a pensar que aproveitaria melhor o meu tempo se voltasse à resma das folhas de dados, às estatísticas e às análises. O virar do século aproxima-se e ainda só escrevi dez páginas. Duas mil e quinhentas palavras. O raio de uma short story, ou neste caso, um short essay. Um quarenta avos do que me propus fazer. Está lá, no contrato, assinado pela mesma mão que, aqui e agora, neste cantinho escondido, sob o universo limitado do foco luminoso, conduz a caneta: o conjunto de curvas e rectas que supostamente só eu saberei fazer, quando escrevo o meu nome. O que sou eu? Afinal, o que sou eu? Um conjunto de traços de tinta num papel. Uma sombra na parede, enquanto há sol. Como é que um pequeno gesto que fiz meses atrás, defronte de cinco pessoas, e do qual quase nada recordo, pode conduzir a minha vida agora, e nos próximos tempos? Como pode ordenar que eu distribua o tempo de que disponho, a minha vontade, ou as minhas energias? Como foi que chegámos a isto, humanidade?
Está a ficar tarde. É melhor ir dormir. Tenho muito que fazer, amanhã.