Afonso viu o carro pela primeira vez numa revista da especialidade. E pode dizer-se que foi amor à primeira vista! As linhas elegantes da carroçaria (não há nada que chegue aos estilistas italianos...), as características técnicas e a gama de acessórios, profusamente descritas pelo jornalista que tinha feito a cobertura do salão automóvel, deram-lhe a certeza que tinha finalmente encontrado o carro dos seus sonhos.
Passou a telefonar semanalmente para o representante, e o seu nome foi o primeiro a ficar em lista de espera. Próximo da data prevista para a chegada da primeira remessa, os telefonemas tornaram-se diários. A revista já tinha as páginas gastas de tanto ser folheada.
Na semana anterior à data de entrega, Afonso resgatou alguns certificados de aforro que juntou na conta ordenado, e pediu ao banco a emissão de um cheque visado para a entrega inicial. Um contrato de aluguer de longa duração cobriria o resto.
A noite anterior foi quase passada em branco. Embora o stand só abrisse às nove, saltou da cama às seis, fez a barba e tomou um duche, engoliu um rápido pequeno-almoço, ligou a televisão, percorreu os canais num zapping frenético, uma vez e outra, desligou, e sem conseguir controlar o nervosismo, saiu de casa. Bebeu um café na pastelaria do costume, sem sequer pegar no jornal desportivo que estava sempre ao canto do balcão para uso dos clientes. Respondeu com monossílabos à conversa do empregado, pagou, saiu da pastelaria e apanhou, impaciente, um táxi.
Quando chegou, o stand ainda estava fechado. Disfarçando a ansiedade, percorreu a rua devagar, fingindo observar as montras das lojas, mas de facto olhando o portão do stand até que viu chegar o vendedor, que arrumou o carro em cima do passeio, saiu calmamente, abriu o portão, ainda voltou ao carro buscar o jornal, e entrou finalmente na loja. Ansioso, Afonso dirigiu-se para lá, esforçando-se por não correr.
Entrou e ali estava «ela» (os anos passados em França faziam com que Afonso pensasse sempre em «carro» como «la voiture»). Resplandecente na sua pintura metalizada, ofuscava todos os outros automóveis existentes no local. Assinou rapidamente o que era preciso, entregou o cheque ao vendedor e este entregou-lhe as chaves.
Deu a volta ao carro apreciando o acabamento imaculado da carroçaria, as jantes de liga leve, o desenho arrojado dos faróis. Sentou-se, ajustando o assento ao seu corpo. Acariciou o volante forrado de couro. Introduziu a chave na ignição e fez arrancar o motor. Ao ralenti, era como o respirar contido de um predador, um grande felino preparado para caçar. O computador de bordo fez um rápido diagnóstico e acendeu uma luz verde, enquanto uma voz feminina, aveludada, dizia: Bem-vindo a bordo.
Afonso engrenou a primeira, destravou e começou a rolar lentamente em direcção à porta do stand. A forma como o motor respondia às pequeníssimas diferenças de pressão no acelerador deixavam-no feliz. Entrou no tráfego, conduziu durante cerca de um quilómetro e desviou outra vez para meter gasolina. Inconscientemente, escolheu umas bombas com auto-abastecimento. Imaginar um empregado a atendê-lo, as mãos de outra pessoa a tocarem nela, fê-lo sentir ciúmes; que disparate, pensou.
Enquanto olhava a sucessão de números a desfilar no mostrador, imagens de um restaurante e de um jantar íntimo à luz de velas passaram pela cabeça de Afonso. O devaneio foi interrompido pelo disparo da pistola quando o depósito ficou atestado. Foi pagar à caixa. Regressou ao carro e ao rodar a chave na ignição, a mesma voz disse: Obrigada por me ter abastecido.
Afonso entrou outra vez no trânsito citadino em direcção à auto-estrada. Manobrá-la na confusão do trânsito era um prazer: leveza na direcção, resposta instantânea na aceleração e travagem. Ajustou o botão da temperatura e o ar condicionado entrou em funcionamento. Tocou noutro botão para ligar o rádio e uma mistura sonora perfeita encheu o espaço interior. Dois toques rápidos noutro botão para seleccionar > Clássica > Wagner.
À entrada na auto-estrada não lhe passou despercebido o olhar de inveja do homem da portagem. Deu-lhe gozo imaginar a cara que fariam os seus colegas de trabalho quando no dia seguinte o vissem aparecer ao volante daquela beleza.
Começou a acelerar e a sua pulsação subia à medida que o ponteiro do velocímetro avançava no mostrador, de forma lenta mas firme, e os prédios na orla da estrada deslizavam por ele cada vez mais rápidos. O prazer da velocidade era como um formigueiro nas suas veias, começando na periferia do corpo e avançando para o interior. Nascia no volante, e das mãos ia subindo pelos braços, vinha dos pedais e do chão para os pés e pernas, dos olhos fustigados pela sucessão de imagens a descer depois pela nuca e toda esta vibração a convergir para o baixo-ventre, continuou a acelerar, e a sua excitação era cada vez mais forte. O rádio transmitia agora «A cavalgada das valquírias» e o som potente aumentava a sua sensação de êxtase, enquanto o ponteiro continuava a subir, 230, 240, 250...
No clímax final, pisou o acelerador até ao fundo enquanto os olhos se fecharam durante uma fracção de segundo. A música misturou-se com o guinchar dos pneus perdendo a aderência, com o rasgar da vedação metálica, com os gemidos da chapa enquanto o carro dava várias voltas sobre si próprio, raspando no solo pedregoso até ser violentamente travado por um dos pilares em betão de um painel publicitário recém colocado pela Prevenção Rodoviária.
Os bombeiros levaram cerca de meia hora para conseguir desencarcerar Afonso, enquanto a ambulância do INEM esperava na auto-estrada e a Brigada de Trânsito se esforçava por controlar os condutores que abrandavam para ver o acidente. Quando finalmente o traziam, já cadáver, numa maca transportada por dois bombeiros em direcção à ambulância, Afonso já não podia ver a mensagem no painel com cujo suporte tinha chocado:
SE CONDUZIR, NÃO SE EXCITE!