Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

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~ Atravessar a Fronteira ~

Já não reconheço este país, embora as árvores sejam as mesmas de ambos os lados da fronteira. Estranho a minha própria terra. É do outro lado que as coisas me parecem familiares. Familiares, e ao mesmo tempo estranhas. Na terra onde nasci, o tempo ainda é tempo, se bem que no último Inverno não tenha havido neve.

Por quilómetros e quilómetros, não há vedação que separe um lado do outro. Pode-se andar para trás e para a frente todo o dia, comparando diferenças até ao anoitecer. Pode-se acordar com a cabeça num país e os pés no outro.

Para falar verdade, nunca andei à noite pelas partes desguardadas da fronteira, mas quando estava no outro país, afastei-me da fogueira do acampamento até não ver um palmo à frente da cara. Deitei-me de barriga para o ar e admirei o céu estrelado por entre a silhueta das árvores. O escuro entre as estrelas é o mesmo escuro que vemos do meu país.

O guarda fronteiriço rondou o carro, tomando notas num bloco. Fez-me levantar a capota e abrir o porta-bagagem. Levou-me para uma sala sem janelas. - Tire a camisa - mandou. Com uma lâmina afiada, puxou a pele do meu peito e revelou a palavra escondida por baixo, o nome do escuro entre as estrelas. Disse: - Pensava que não íamos procurar aí?

No outro país, usam papoilas de plástico vermelho ao peito para lembrar os mortos de guerra.

Nos montes do outro país, deparei-me com um campo de papoilas. Não eram nada vermelhas, mas alaranjadas.

Já não reconheço este país, a terra onde nasci. Às vezes sinto que atravessei uma fronteira que não tinha intenção de passar. Aquelas são as colinas que lá sempre estiveram, cobertas de árvores que conheço bem. Mas no último Inverno não houve neve, e o vento levantou as pétalas secas das papoilas em amontoados a dar pelo joelho.

O guarda fronteiriço rondou o carro. Revistou o banco de trás, o porta-bagagem, os tampões das rodas. Levou-me para uma sala sem janelas. - Tire a camisa - mandou. Espetou-me uma agulha no braço e tirou-me sangue. Espalhou-o numa lamela de vidro e leu o nome que eu levava para casa como contrabando. Disse: - Pensava que não íamos procurar aí?

--oOo--

Nota final: Este conto é uma villanelle em prosa. Os dezanove parágrafos repetem os refrães num esquema idêntico ao dos dezanove versos de uma villanelle. Em verso, estes repetem-se exactamente. Em prosa, os parágrafos-refrão tendem a permitir uma maior variedade, e nalgumas das obras de Barbara Lefcowitz, quiçá a mais prolífera autora de villanelles em prosa, os refrães são por vezes bastante subtis. As suas repetições podem limitar-se à abordagem de um determinado tópico ou palavra, ao invés de uma reiteração das estruturas frásicas.

 

Título Original: Border Crossing
Tradução: Luís Rodrigues (2004)

 

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Autor:
Bruce Holland Rogers