Existe, algures num pequeno e quase desconhecido afluente do rio Guadiana, uma velha ponte, única ligação das duas margens numa vasta área em redor. Hoje em dia já quase ninguém a atravessa, pois o caminho até lá é longo, chegando a ser sinuoso em alguns locais. Como se tivesse sido essa a maneira que a natureza arranjou para preservar de olhares indiscretos os jovens namorados mais afoitos que se aventuram até à Ponte dos Dois Corações, nome pelo qual é conhecida desde há muito tempo. Ali, nada mais existe, para além de antigas ruínas, quase escondidas pela vegetação.
Mas nem sempre foi assim. Reza a história que, em tempos, existiram duas pequenas povoações em cada uma das margens. Viviam em constante discussão sobre a posse da ponte, pois cada um dos lados reclamava ser o verdadeiro dono da passagem sobre o rio. A rivalidade destes dois lugares era tão forte que impedia qualquer tipo de convívio entre os seus habitantes, servindo a mais vulgar actividade social ou cultural para uma medição de forças. Um simples arraial ou uma banal feira mensal originavam sempre enormes discussões e conflitos, que muitas vezes terminavam em verdadeiras batalhas campais. O rio era quem mais sofria com as hostilidades, pois servia de fronteira entre os dois grupos rivais.
Nessas ocasiões e no final de um confronto, metia dó olhar para as águas do pequeno rio, repletas de tomates e ovos podres, munições mais utilizadas nestas ocasiões. Havia quem estivesse sempre fornecido destes produtos já putrefactos, para os vender nestas ocasiões. O resultado era devastador para o pobre ribeiro. Durante horas ninguém se podia aproximar das margens, tal o fedor que de lá emanava e que ninguém conseguia tolerar.
Acontece que, alheios a todas estas questiúnculas, dois jovens juraram amor eterno, tendo como única testemunha a pequena ponte. Este namoro não teria qualquer significado especial na nossa história, não fosse o facto de terem nascido e viverem em margens diferentes. Receando as consequências para os dois, havia muito que ali se encontravam às escondidas. Todos os dias esperavam pelo anoitecer e, sem que ninguém se apercebesse, saíam de casa para se encontrarem sobre o rio. Ficavam durante horas no cimo da ponte, fazendo planos para o futuro e tentando arranjar uma forma de conseguirem contar aos pais o seu segredo.
Muitas vezes se separaram decididos a revelar às respectivas famílias o amor que os unia. Mas acontecia sempre algo que os levava a adiar tal intenção. Como daquela última vez em que se separaram, decididos a contar a todos a verdade. Marcaram para o dia seguinte a revelação dos seus intentos às duas aldeias, mas no último momento tiveram que desistir. Haviam combinado encontrarem-se ao meio-dia em ponto sobre a velha ponte e deixarem-se ficar de mãos dadas, anunciando assim o seu namoro. Mas, logo nesse dia, os seus pais pegaram-se de razões por causa de uma ovelha tresmalhada. Aproveitando a distracção do pastor, o pequeno animal afastara-se do rebanho, atravessara a ponte e fora pastar no jardim dos pais do rapaz. Assim que deram por isso, começou a discussão que rapidamente subiu de tom, provocando um confronto generalizado. Esgotados os ovos e tomates podres, voaram pedras e pequenos paus, que atingiram, além de outros, os pais dos jovens, forçando-os a receberem tratamento.
Desanimados, os dois jovens decidiram que o melhor seria aguardar até que os ânimos acalmassem. Mas por diversas razões, os ânimos nunca mais acalmaram. E foram assim adiando a revelação do seu amor. Continuaram, contudo, a encontrar-se no mesmo local, ora na quietude da noite, ora mesmo antes do amanhecer.
Um dia, achando que haviam já esperado tempo demais, resolveram encontrar-se na ponte já depois do sol raiar. Seria logo bem cedo, na altura em que a maioria das pessoas sai para o trabalho. Assim, poderiam ter testemunhas do amor que os ligava e que os levava a enfrentar tudo e todos. Não iriam adiar mais aquilo que já não lhes era possível esconder por mais tempo.