Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Conto

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~ O Habitante das Paredes ~

Deu logo com o volume de terras a monte e um buraco fundo. Propelius olhava para cima com expressão desorientada. «Tira-me daqui!» implorou, rouco e com voz cansada. A mulher socorreu-o com uma escada de alumínio.

Saiu da cova com feição de alívio estampado no rosto, gelado, sujo de terra e com borbulhas nas mãos, desabituadas de tamanho esforço físico.

Propelius esteve uns dias sem poder conduzir e a combater uma teimosa constipação. Quando Ortéria lhe perguntou porque fizera buraco descomunal para plantar uma simples roseira, justificou-se dizendo apenas que se «entusiasmara», pensando que poderia chegar ao outro lado do mundo, se persistisse.

Propelius esteve quase um mês sem se meter em actividades estranhas. Até que um dia foi à cave e trouxe para a sala um manequim. A mulher usara-o como modelo. Estava agora arrecadado pois Ortéria aborrecera-se da costura há muitos anos.

Arrastou-o para a sala com visível esforço. Enquanto o vestia, com a roupa que deixara de lhe servir, explicava à mulher que se sentia muito só quando via os jogos de futebol. «Se quiseres, sento-me contigo» disse-lhe, tentando demovê-lo da ideia. «Desculpa, mas isto não é coisa para mulheres», retorquiu em tom sem margem para contestações. Então ela usou de argumento mordaz: o manequim tinha uma expressão efeminada. Propelius, apesar de constatar da evidência, não capitulou: pediu-lhe, com cega resolução, que o ajudasse a fazer um bigode com linhas de costura. Ela achou a ideia disparatada, mas acabou por ceder à sua insistência.

Propelius não tardou a enfadar-se com o «Romeu». Imóvel e de uma mudez sepulcral, não partilhava do seu entusiasmo com o jogo. Acabou por voltar a pô-lo na cave, o bigode caído entre os pés descalços, as mandíbulas cerradas e o olhar ofuscado por uma implorativa e eterna mudez.

--oOo--

- Nunca mais saíste de casa... Estar sempre fechado dá neurastenia - comenta Ortéria, baixando os óculos ao nariz.

- Não preciso de sair, tenho imaginação… O mundo está cada vez mais cheio, já não se pode respirar na rua sem se ter um gajo preso às nossas costas...

Ortéria finca a agulha, põe a língua de fora. O xaile lilás que tem sobre os ombros oscila com o movimento do braço direito.

- Não sei porque fazes isso... - diz Propelius.

- Isso o quê?

- A língua de fora.

- Ora, é um hábito como outro qualquer. Tu também não andas sempre a fazer caretas?

- Caretas, não. É um tique nervoso.

- Para mim é tudo igual.

- Nunca te disse, mas tenho dons especiais - diz Propelius em tom sério, mudando de assunto.

- Eu sei. Já te vi a dormir de pé e com os olhos abertos.

- Isso não é um dom, é uma habilidade - responde Propelius, agastado.

--oOo--

Propelius diz a Ortéria que já não suporta o calor. Deixará de ir para o telhado com a cadeira de alumínio desdobrável, o jornal, de calções e sandálias. Também já não precisa de se bronzear, a pele tem a cor crespa da terra seca.

Assim ficava nas tardes grandes do estio, sentado, a ler ou a olhar a baía. Levava os binóculos, apontava-os aos barcos, seguia o vagaroso voo das aves marinhas. Às vezes dormia, o chapéu de lona caído no nariz.

Já não vou mais para o telhado, repete, enquanto enrola ao pescoço uma toalha molhada. Depois segue nu para o quarto.

Tinha saído do banho. Revia mentalmente as horas em que passariam na televisão os vários jogos, desde o futebol americano ao basquetebol.

--oOo--

Ela abre o forno, mete a forma, o quarto bolo nessa semana. Calado, ele bate o chocolate, essências de amêndoa, açúcar de pétalas, respingos de tangerina. Sua muito enquanto vai batendo, amodorrado.

- Não acreditas, mas um dia vou mostrar-te os meus poderes - diz Propelius de súbito, bocejando.

Agora põe três colheres de brande na mescla, mexe, leva a colher de pau à boca, lambuza os lábios, a camisa. «Um dia vou mostrar-te os meus poderes» repete, colhido por um tédio mortal.

--oOo--

Ortéria deixou de tocar piano. Foi uma decisão espontânea. Em mais de 20 anos, tentou que a música produzisse um milagre na ardósia temperamental do marido, insensível aos seus dotes artísticos. Lavou-lhe a alma anos seguidos, sentada ao piano a tocar, até os dedos começarem a perder a elasticidade, as costas a curvarem-se, o rosto a enevoar-se com a hipocondria das sonatas. Mas ele era uma estátua emocional, erecta no centro de um fontanário de sombras. Entrara na vida dela como um ladrão. Sentado no sofá, refugiava-se na música dela para se esquecer do mundo.

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Através dele, as notícias do amor vinham em palavras e gestos sem paixão. Nunca existiram nos jogos da loucura, no abismo ou na corola dos instantes. Agora, tantos anos depois, queria para a alma um pouco de água, que a redimisse dos desertos, da apagada chama do silêncio.

A existência de Ortéria era uma componente visível da rotina, pairando sobre as coisas, enredadas ao automatismo como uma neblina: no dobrar da roupa, nos preparos da cozinha, no regar das plantas, no abrir da correspondência, no espreitar por entre as cortinas a placidez da baía e a morte das estações. O regresso de ninguém.

--oOo--

A baía desperta com os gansos. Ortéria encosta-se ao mutismo, chega-se à lareira dos pensamentos para aquecer o coração desolado. Vive nesse interior, fechada. Sente um brando entorpecimento de ecos chocando-lhe no peito. Na sua vida há o desterro de uma silhueta, perdida no chão ferido dos seus passos sem destino.

Chega-lhe, de fora, um ruído. Corre a cortina e observa: é um pica-pau. Bica o copo de plástico sobre a mesa do pátio.

Vai fazer o café.

Propelius já deve ter acordado.

--oOo--

- Propelius, vem comer!

Tem as mãos molhadas, enxuga-as no pano da loiça. Na mesa posta, duas margaridas amarelas num vaso de cristal, a manteiga, croissantes. O café fumega.

Corre as cortinas, abre um pouco a janela. Sente no ar o cheiro das ervas que crescem, o zumbido das abelhas. Um barco encosta ao cais.

Chama pelo marido, agora alto. O café vai arrefecer, diz irritada. Só o eco da sua voz lhe responde.

Decide procurá-lo.

Vê pegadas de água no quarto de banho, do chuveiro à sanita. Retira da pia a escova do cabelo e atira-a de repelão para a gaveta. Será que está na sala a ler o jornal?

Não o encontra. Abre a porta da frente, encontra o jornal caído sobre o tapete. Inquieta, pega nele e fecha a porta.

Não está em lado nenhum. Acende a luz do corredor e então repara nos chinelos dele, encostados à parede. Sobre eles está um envelope. Abre-o e desdobra a carta. Lê as linhas enviesadas, miúdas, palavras que a levam a lado nenhum. Propelius entra assim de bruços na parede da evasão. A sua vida esteve sempre caída como uma sombra nos degraus do tédio. Agora não há outro recurso se não partir, procurar o princípio das coisas até ao fim das cinzas. Não leva nada e menos deixa: apenas queixumes sem vírgulas, escritos com pulso trémulo e indeciso.

Ortéria, angustiada, encosta-se à parede, os braços caídos, a cabeça pendida. Segura a carta na mão direita. Dentro dela, pesam de súbito os anos todos da sua idade. O corpo começa a resvalar pela parede, até que fica sentada no chão com as palavras mortas do marido abandonadas no regaço.

--oOo--

Nunca procurou por ele. Talvez porque no fundo nunca acreditasse no seu regresso. «Nunca te disse, mas tenho dons especiais». Que dons? Nunca lhe vira nenhum, magicava às vezes tentando juntar na lógica os baralhados fios do mistério.

Mas um dia, quando passava no corredor, pareceu-lhe ouvir o som de um piano sair da parede. Não pode ser, questionou-se alterada. Encostou um ouvido à parede e verificou: não era sugestão sua. Com o coração disparado, foi à sala ver se tinha o rádio ligado.

--oOo--

Olhando as fotografias no álbum, Ortéria lembra-se de Propelius.

Antes de ter desaparecido, tinham ido passar um fim de semana a Seattle. Na fronteira, o polícia americano perguntou-lhe que charuto fumava. «Cubano», respondeu. O agente fulminou-o com o olhar:

- Você não sabe que há um embargo comercial entre os Estados Unidos e Cuba?

Propelius, muito sereno, que sim, sabia. Mas os charutos tinham sido comprados no Canadá. Portanto, essas restrições não se aplicavam no seu caso.

Muito zeloso, das suas obrigações e do seu patriotismo, o polícia passou-lhe um papel e ordenou-lhe que fosse ao escritório.

Antes de sair do carro, Propelius apagou o charuto no cinzeiro. Depois disse à mulher que não se preocupasse com ele.

O agente, de cabelo muito curto e ar severo, ao mesmo tempo que puxava de um formulário, fez um gesto com a cabeça para que se sentasse.

Propelius tirou o charuto do bolso da camisa e acendeu-o, apesar dos cartazes nas paredes a interditar fumadores.

- Que está a fazer? - perguntou o polícia, atónito.

- Estou a fumar a evidência - ripostou Propelius com ar de desafio.

«Às vezes temos de contrariar a lei para denunciar a sua falta de lógica», disse Propelius a Ortéria mal regressou ao carro, a cara abafada em fumo e o charuto apertado entre os dentes.

Ortéria guardava esse episódio com estranha ternura. Mesmo fechando sem lágrimas o álbum da sua vida a dois.

 

Conto galardoado com o Prémio de Ficção Primavera 2000 da revista Eventos (Tecnofantasia.com)
(c) 2000 Eduardo Bettencourt Pinto

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Autor:
Eduardo Bettencourt Pinto