Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

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Conto

 

Memórias da Peste

 

Mário M. B.

 

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Gertrudes estava cheia de vontade de pregar uma rasteira a alguém. O certo é que o homem da frente estava cheio de catotas nos cabelos, como biscoitos horrendos. Montículos de caspa com pedaços de trampa que devia julgar incólumes. Gertrudes beliscava o antebraço com a força digna de um dedo entalado numa porta, violentamente. E gemia baixinho, rodando os pés em semi-círculos, quase ouvindo o queixo do indivíduo imundo caindo potentosamente num chão sujo de pedras, um estilhaçar de ossos, numa louca e sempre viva lavagem depois do sangue, o prazer do delírio na fractura.

A companheira ao lado, era quase certo que tinha chatos. Onde estava a piedade se tudo o mais era horrível? O bocadinho de creme de bola de Berlim no canto da boca lembrava o esperma de um mosquito com icterícia. "Já viste a tua fronha, animal doméstico?", Gertrudes em desespero. A beiça da mulher era digna de uma mariposa, daquelas muito gordas e coloridas, pois os lábios desciam, como um bife de frango em decomposição e dependurado. Os cabelos oleosamente puxados para trás, ainda assim, havia uns revoltosos que se levantavam à medida que as palavras saíam cuspidas da sua boca, dir-se-ia uma tampa de esgoto com molas amovíveis. O buço fazia lembrar musgo quase real. "Deus fez umas bolas, chutou-as e caíram estas absurdidades de um ventre numa casa de banho pública."

Um terceiro tinha cara de roedor, no máximo da potência pobre de quem é parasita, chamar-lhe-ia Vardasco, o atacante, pois mirava-a com olhos de cão raivoso. A outra seria e então Joaquina a asquerosa, a figura de batata frita, implacável na gordura em chamas no cabelo. Vardasco, o rei da dor visual. O monarca tinha tiques. Piscava furiosamente o olho direito, colado em ramelas com prazo de dias, de quando em vez tinha o suposto rasgo na face, que seria a boca, fechado em tensão, lembrando então um zipe encravado. Gertrudes sentia-se sitiada. Tanta a dor e no entanto era só mais um bocadinho, mais duas estações. Vardasco tossia agora, parecia ter uma convulsão tubercolínea, num circo doente, de explosões de gases nasais, um rio de lodo com bivalves e tudo, que devia habitar-lhe o sistema respiratório.

Gertrudes engoliu em seco. As pedras no meio dos carris pareciam lascas em brasa que lhe violavam a carne, como uma visão infernal, procurava um refúgio que por ali não havia. A escuridão do túnel, as luzes da carruagem que aumentavam a impotência de não poder fugir. Respirou fundo, com uma abordagem contida da atmosfera pesada de bactérias soltas que a rodeava. Joaquina puxava a expectoração agora, como um rasgo na carne, um cogumelo carnudo que regurgitava sem dó dos outros, como um corpo vindo de uma lixeira coberta de doença. Gertrudes estava perto de desfalecer. Havia dias em que não conseguia alienar-se da ópera porca feita pela população do comboio que a levava do subúrbio à cidade. A angústia de não ter um carro, a raiva de todos os que não tomavam banho, a chuva quase ácida que lhe produzia um suor espesso que se via enturmado com as camisas de flanela do parceiro do lado, morador de um T2 em Rio de Mouro, que lia um jornal desportivo segurado por uns dedos anelados de alcatrão, uma ferida fantasma que lhe lembrava morte e omoletes de ovos com salmonelas.

Gertrudes era declaradamente uma sofredora, porque sofria por si e pelos outros que não tinham consciência da dor que carregavam. Debaixo do braço a mala da Louis Vuitton que tinha comprado duas semanas antes, numa esperança vã de passar despercebida por si mesma quando entrava na tumba que rolava sobre carris. "Avé Maria cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres…" Gertrudes tocou com as mãos Vardasco que olhava, absorto pela porta que se abria antes do tempo. "Amén!" O grito de Gertrudes antes do rolar do corpo que fez um som de carniça arremessada quando caíu nas pedras. A face massacrada pelas pedras lascadas, as mãos limpas repletas de ervas sujas de pó molhado, a mala de marca embrulhada nos braços, um olhar penitente e assustado. Joaquina que gritava enquanto puxava o travão de emergência, o homem da frente caído no chão, Gertrudes tropeçara nele ao mandar-se, a vitória de um seu desejo no cumprir de um destino que sempre assim quis, fatal.

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Autor:
Mário M. B.