Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Noveleta

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~ The Rodney King Global Mass Media Artwork ~

A ideia que lhe surgiu foi de usar a Diplomacia.

A Diplomacia assumia a forma de Rodney King. A figura emblemática cuja actuação involuntária como vítima real de um espancamento por parte da polícia tinha conduzido à revolta da população negra daquela mesma cidade, era o ícone perfeito para se dirigir às massas e apelar ao bom senso. Rodney não queria. Mudara-se para o Centro-Oeste, para uma vila pacífica onde não era conhecido nem tinham informações sobre o seu passado, e não pretendia ser submetido de novo à violência da metrópole ocidental, em particular por conhecer bem de mais a situação. A revolta ajudara-o sobremaneira a obter o resultado pretendido do julgamento; mas enfrentar a besta de novo era loucura. O Presidente, contudo, não lhe deixou muito por que escolher. E assim, Rodney tomou o avião da Força Aérea, nessa mesma noite, com destino a Los Angeles.

Colocaram um escritor do Gabinete de Imagem do Presidente a preparar-lhe o discurso. Iria ser feito a partir do décimo andar de um prédio fronteiro à zona dos enclaves. Conduziram-no sob escolta fortemente armada, dentro de um tanque.

O sistema de som já se encontrava montado. Rodney começou por dirigir-se aos captores como irmãos, irmãos de pele, de sangue, de luta. Falou da sua própria experiência às mãos da opressão. Falou da captura, do espancamento, da adesão do povo, da raiva impotente que os atingia a todos. E depois concluiu, dizendo que era errado, tinha sido errado então e continuava a sê-lo, talvez mais. Lembrou que entre os reféns haveria apenas, talvez, um ou dois racistas activos; os outros eram inocentes, como eles: herdeiros, tão-somente, de uma História e de uma cultura que não aceitavam. Comportamentos como o demonstrado é que davam razão aos racistas.

- ... portanto, irmãos, vamos acabar com a revolta - acrescentou, para terminar, ocorrendo-lhe que o texto memorizado estava a chegar ao fim, e que, se lhe fizessem perguntas, não fazia a mínima ideia do que dizer. - Libertem os reféns e deixemos a cidade voltar ao ritmo normal. Afinal, debaixo da pele, somos todos irmãos. Agindo com revolta, com ira, estamos a fazer pouco do exemplo de Martin Luther! Pois não foi ele que disse...

Nesse momento a sua voz embargou-se. A multidão focou os olhos, procurando discernir a figura diminuta no alto. Não foi produzido mais nenhum som.

E segundos depois, o corpo inerte de Rodney King venceu os trinta metros que o separavam do solo, tombando como uma bandeira solta do mastro. Embateu no asfalto com um baque surdo, humano.

A multidão demorou a reagir. Os que se encontravam mais próximos perceberam de imediato a causa da morte, e espalharam-na. Rodney apresentava um buraco cauterizado na testa com o diâmetro de um dólar de prata.

E quando a multidão começou a gritar "Traição! Assassinos! Morte aos brancos!", Los Angeles iluminou-se na última manifestação de revolta, como o eco do ultraje generalizado:

KING MORREU

Surgiu em todas as superfícies possíveis. A palavras não se mantinham estáticas. Voavam de prédio em prédio, cobriam ruas inteiras, atravessavam veículos estacionados e invadiam os cartazes e outras manifestações publicitárias. Mudavam de cor vertiginosamente, aumentavam de tamanho, diminuíam, e eram acompanhadas por imagens: Martin Luther no palanque dos discursos, Rodney a ser espancado, Martin Luther a ser detido, Rodney a ser espancado, Martin Luther a ser alvejado a tiro (imagem fictícia, mas a multidão não percebeu a diferença), Rodney a ser alvejado na cabeça e a tombar das alturas.

A multidão enlouqueceu.

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Tornou-se impossível à Guarda Nacional conter os milhares de indivíduos enfurecidos que num só instante romperam as barreiras e submergiram os agentes numa onda humana sem igual. Os reféns brancos foram atirados das janelas, numa vingança pálida, e os seguranças que tinham acompanhado Rodney não tardaram a juntar-se a ele, lá em baixo. James Colburn, que considerava ser o dever do Mayor acompanhar a cidade sob a sua jurisdição nos bons e nos maus momentos, e que, algo romanticamente, fantasiava-se no papel do comandante do navio que, se necessário, iria com ele ao fundo, viu o desejo de glória realizado, falecendo no exercício do dever.

A onda inundou as ruas. Repetiu o feito dos primeiros dias, mas em maior intensidade. Acompanhavam-nos as imagens nas paredes, quase em sincronia, como num grande espectáculo de luz e cor. Agiam como guias de uma consciência colectiva deturpada, ou violentada, em substituição das consciênciazinhas individuais, convenientemente abafadas. A multidão pilhou, destruiu, incendiou - e avançou. Espalhou-se.

Foram necessários oito dias de cerco militar apertadíssimo e artilharia pesada para controlar a situação. Los Angeles, entretanto, tinha-se tornado numa sombra do que fora. O primeiro palco de guerra moderna da história americana, ao qual havia sido poupada durante a participação em dois conflitos mundiais e em dúzia-e-meia de escaramuças locais, sem importância, da América do Sul. Demoraria anos e milhões de milhões de dólares a reconstruir a cidade. Nessa soma, contudo, não se encontravam contabilizadas as duas mil vidas humanas.

Dan Peterberg, judeu e branco, sobrevivente do massacre e actualmente radicado numa vila de Illinois, colunista do Chicago Sun Times, descreveu em livro os derradeiros dias do evento.

"... quando era pequeno, vivia imerso em imagens de violência. Os meus avós maternos haviam atravessado o pesadelo de Auschwitz, e, como sobreviveram, tomaram nas suas mãos a tarefa (que, penso, é comum a todos esses sobreviventes) de transmitir às gerações futuras o horror, e manté-lo, de certa forma, vivo. Eu, o primogénito da segunda geração, tornei-me no alvo óbvio de todas as histórias de usurpação, abuso, raiva e morte. Fui exposto às fotografias e às desgraças pessoais de alguns indivíduos: de aqueles que, pouco mais do que uma pele esticada sobre o esqueleto, ainda se mantinham de pé, e de outros cuja cabeça se distinguia a sobressair dum monte de corpos. Não critico a acção dos meus avós, isto que fique bem claro: o que eles sofreram merece ser lembrado, de modo que, acima de tudo, consigamos evitar que se repita aquela desumanização consentida. Mas, no meu caso particular, sentia a minha infância a ser-me roubada de um bom quinhão da leveza que acompanha a inocência. A aprender a odiar quando devia, de facto, aprender a amar. Os meus avós morreram antes do meu oitavo aniversário, mas então já me encontrava infectado. De tal modo que, ainda hoje, nunca pus os pés na Alemanha nem consigo ouvir falar alemão sem me arrepiar (...)

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Autor:
Luís Filipe Silva