A ideia que lhe surgiu foi de usar a Diplomacia.
A Diplomacia assumia a forma de Rodney King. A figura emblemática cuja actuação involuntária como vítima real de um espancamento por parte da polícia tinha conduzido à revolta da população negra daquela mesma cidade, era o ícone perfeito para se dirigir às massas e apelar ao bom senso. Rodney não queria. Mudara-se para o Centro-Oeste, para uma vila pacífica onde não era conhecido nem tinham informações sobre o seu passado, e não pretendia ser submetido de novo à violência da metrópole ocidental, em particular por conhecer bem de mais a situação. A revolta ajudara-o sobremaneira a obter o resultado pretendido do julgamento; mas enfrentar a besta de novo era loucura. O Presidente, contudo, não lhe deixou muito por que escolher. E assim, Rodney tomou o avião da Força Aérea, nessa mesma noite, com destino a Los Angeles.
Colocaram um escritor do Gabinete de Imagem do Presidente a preparar-lhe o discurso. Iria ser feito a partir do décimo andar de um prédio fronteiro à zona dos enclaves. Conduziram-no sob escolta fortemente armada, dentro de um tanque.
O sistema de som já se encontrava montado. Rodney começou por dirigir-se aos captores como irmãos, irmãos de pele, de sangue, de luta. Falou da sua própria experiência às mãos da opressão. Falou da captura, do espancamento, da adesão do povo, da raiva impotente que os atingia a todos. E depois concluiu, dizendo que era errado, tinha sido errado então e continuava a sê-lo, talvez mais. Lembrou que entre os reféns haveria apenas, talvez, um ou dois racistas activos; os outros eram inocentes, como eles: herdeiros, tão-somente, de uma História e de uma cultura que não aceitavam. Comportamentos como o demonstrado é que davam razão aos racistas.
- ... portanto, irmãos, vamos acabar com a revolta - acrescentou, para terminar, ocorrendo-lhe que o texto memorizado estava a chegar ao fim, e que, se lhe fizessem perguntas, não fazia a mínima ideia do que dizer. - Libertem os reféns e deixemos a cidade voltar ao ritmo normal. Afinal, debaixo da pele, somos todos irmãos. Agindo com revolta, com ira, estamos a fazer pouco do exemplo de Martin Luther! Pois não foi ele que disse...
Nesse momento a sua voz embargou-se. A multidão focou os olhos, procurando discernir a figura diminuta no alto. Não foi produzido mais nenhum som.
E segundos depois, o corpo inerte de Rodney King venceu os trinta metros que o separavam do solo, tombando como uma bandeira solta do mastro. Embateu no asfalto com um baque surdo, humano.
A multidão demorou a reagir. Os que se encontravam mais próximos perceberam de imediato a causa da morte, e espalharam-na. Rodney apresentava um buraco cauterizado na testa com o diâmetro de um dólar de prata.
E quando a multidão começou a gritar "Traição! Assassinos! Morte aos brancos!", Los Angeles iluminou-se na última manifestação de revolta, como o eco do ultraje generalizado:
KING MORREU
Surgiu em todas as superfícies possíveis. A palavras não se mantinham estáticas. Voavam de prédio em prédio, cobriam ruas inteiras, atravessavam veículos estacionados e invadiam os cartazes e outras manifestações publicitárias. Mudavam de cor vertiginosamente, aumentavam de tamanho, diminuíam, e eram acompanhadas por imagens: Martin Luther no palanque dos discursos, Rodney a ser espancado, Martin Luther a ser detido, Rodney a ser espancado, Martin Luther a ser alvejado a tiro (imagem fictícia, mas a multidão não percebeu a diferença), Rodney a ser alvejado na cabeça e a tombar das alturas.
A multidão enlouqueceu.