Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Noveleta

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~ The Rodney King Global Mass Media Artwork ~

As palavras continuavam a tremeluzir na frenética actividade das nanomáquinas. Encontravam-se programadas no próprio código, e sem dúvida as três frases polémicas que haviam agitado a multidão não seriam as únicas. Como mudavam, a que sinais reagiriam, iria demorar ao laboratório semanas para decifrar. Ao que parecia, o algoritmo de comando não se assemelhava ao utilizado pela pesquisa da Defesa. Ou seja: as nanomáquinas não pertenciam à milícia americana. Mas o tempo escasseava. Os motins continuaram, principalmente nas zonas pobres. Consistiam em saques e pilhagens, e ataques aos motoristas brancos numa repetição do acontecido anos atrás, os seus perpetradores esperançosos de, talvez dessa forma, surgirem no horário nobre de qualquer canal internacional.

Os helicópteros dos jornalistas sobrevoavam as áreas atingidas com regularidade, tendo-se tornado habituais os comentários apressados feitos em directo com a câmara a olhar do alto os transeuntes enlouquecidos como se pertencesse a um plano moral mais elevado, enquanto as pás gigantescas faziam vup-vup como ruído de fundo. Até que alguém se sentiu ofendido (ou cansado) da atitude arrogante, assaltou um armazém desprotegido do Exército e enviou um míssil portátil terra-ar contra o focinho daqueles seres tão altivos e incólumes.

Por todas as estações de tv e rádio e redacções de jornais, revistas e agências de notícias, em todo o lugar onde houvessem jornalistas, fez-se um minuto de silêncio.

Depois caíram como predadores esfomeados sobre o prémio de exclusividade das imagens.

O Presidente, contudo, considerou que tinha chegado o momento de interceder em pessoa, e substituiu o conjunto de discursos televisivos em que oferecia apoio e compreensão às vítimas da tragédia por uma proclamação directa de intervenção imediata. Subiu dez pontos na escala de apreciação popular ao fim de meia hora, como tinha sido previsto pelo Gabinete de Imagem.

A sua solução foi enviar a milícia armada e terminar de vez, forte e decisivamente, com os conflitos.

A reacção dos revoltados (ou quiçá de quem estava por detrás dos cartazes, pois nunca se chegou a saber) foi a detonação de cinco bombas na área metropolitana. Destruíram um MacDonald's, um centro comercial Van Nuys, um centro de saúde e um lar de idosos. A quinta rebentou no pátio de uma escola, nas primeiras horas da manhã, antes de as crianças chegarem. Matou uma jovem professora negra que tinha pretendido começar bem cedo a montagem dos preparativos para a festa de encerramento do ano lectivo.

Cento e oitenta mortos. Duzentos feridos. As páginas do Los Angeles Times, nas suas várias versões geográficas, apresentavam títulos com a sobriedade de "Ressurgimento da "Revolta"?" ou o facto presumido de "Terroristas atacam minorias rácicas" ou o ar de dramalhão radiofónico de "Pânico na Metrópole"... com a excepção da versão local de Beverly Hills, em que a notícia era relegada para uma página interior. dedicando-se a capa a apreciar o início do projecto camarário de replantação das palmeiras.

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Na manhã seguinte, o povo acordou em pânico. Os cartazes jaziam, todos, tombados no chão, virados, desfeitos. Aparentemente, haviam caído por vontade própria, pois o fenómeno restringia-se aos que ostentavam as frases. Aqueles que haviam tombado com a face publicitária para cima ostentavam a ordem

VINGA-TE, IRMÃO!

Mas o verdadeiro terror imprimia-se nas paredes.

Porque todas as casas da metrópole tinham acordado cobertas com um graffiti negro e violento, onde surgia em dimensões gigantescas a palavra LIBERDADE JÁ, pintada preto sobre branco. Aparecia sobre os anúncios dos outros cartazes, sobre os dísticos comerciais das lojas, nos vidros das montras, na chapa dos carros estacionados, no asfalto. Desenhava-se nas fachadas desde o rés-do-chão de cada prédio ao andar do topo, transformados nas telas da maior pintura do mundo. A população, ao despertar, encontrou as casas, o conforto e intimidade dos lares, invadidos com imagens das figuras da revolução rácica: Rodney King, Martin Luther, Malcom X, Nelson Mandela, Steven Biko. Tal como nas ruas, a presença era universal, encontrava-se nas paredes, nos móveis, nos objectos de decoração. Para onde se olhasse, estava lá, não havia fuga.

E, a intervalos, surgia no padrão complexo uma segunda figura, estranha, na forma de uma cabeça tapada por um capuz branco e encimada pelos dizeres

AQUI DENTRO ESCONDE-SE UM BRANCO

Foi esta figura, mais do que qualquer outra, que levou a população negra a atacar massivamente a branca, e esta a reagir.

O trânsito foi obrigado a parar, ante a avalanche de figuras humanas que num único instante, como se coordenadas, como se gotas da mesma onda, irromperam pelas avenidas, derrubando barreiras policiais, desfazendo carros e montras e exposições e portas de entrada e todos aqueles que encontrassem no caminho. Entraram pelas escadas, subiram os elevadores e irromperam pelas moradias na sua loucura cega. Atacariam pessoas, ou ícones? Vingavam-se contra uma repressão que haviam sentido durante séculos, ou reagiam contra uma overdose semiótica de símbolos e encorajamento? Não poderiam responder, pois haviam perdido a capacidade da fala. Haviam desistido do raciocínio. Como se uma força mais potente dentro deles, que sempre tinha estado e sempre estaria, em condições normais, adormecida, despertasse subitamente, e afastasse com desdém as funções superiores, humanas, do cérebro. Porque quem presenciou e sobreviveu ao holocausto testemunha que não eram seres humanos, mas animais ferozes, de presas arreganhadas a pingar saliva, e olhos que não conheciam a compaixão.

James não perdeu tempo a chamar a Guarda Nacional, cuja primeira táctica foi criar um cordão de defesa para conter a violência num espaço definido. O espaço, contudo, não era pequeno, não se limitava aos bairros mas a toda a zona metropolitana, e a Guarda encontrou dificuldades para manter o cerco coeso. A segunda táctica foi aguardar por um abrandamento da insurreição, que parecia não surgir. O único modo de acabar com a situação seria usar artilharia pesada, e o Mayor sentia dificuldade em dar a ordem - embora o conflito se tivesse tornado numa verdadeira guerra em pequena escala, pois os habitantes, fazendo jus à tradição pioneira dos americanos, possuíam poder de fogo suficiente para recriar o cenário da ex-Jugoslávia.

James Colburn não precisou de preocupar-se durante muito tempo, porque o Presidente avançou com a autorização em seu lugar. Tinha de preocupar-se com um país inteiro, pois então, e não podia deixar a ameaça espalhar-se para as outras cidades - que entretanto tinham começado a manifestar sinais de inquietação independentes, mas logo abafados.

A Guarda Nacional avançou em força.

Avançou com meios que neutralizaram as posições anti-aéreas do inimigo - por outras palavras, enviou helicópteros armados até às pás com o propósito de exterminarem todos os sacanas que encontrassem a usar um lança-mísseis portátil. Avançou com uma força terrestre com o propósito de dispersar e neutralizar guerrilhas e agrupamentos de ataque - a força terrestre consistia em tanques fabricados segundo a mais moderna tecnologia, testados no Golfo, que lançavam jactos de água gelada para a multidão e saraivadas de bombas de gás lacrimogénio (como pareciam não fazer muito efeito, houve alguém que se lembrou de usar granadas verdadeiras, o que trouxe melhores resultados, mas a ideia não vingou). Avançou com meios químicos e biológicos inofensivos para reduzir o estado de ansiedade e violência dos atacantes - substituiram o gás lacrimogénio por um produto, não completamente testado, que fazia simplesmente adormecer os indivíduos expostos a ele; provocava, a longo prazo, lesões no cérebro e ataques de epilepsia, mas ninguém tinha consciência do facto, então.

Embora de resolução difícil, tornou-se evidente desde o início que a Guarda Nacional acabaria por, eventualmente, dominar o conflito. O Presidente, contudo, começava a preocupar-se com o mais recente desenrolar dos eventos, que era a tomada de reféns pelos atacantes. Desconfiava, com aquela intuição inata do político em véspera de eleições, que não seria uma atitude muito popular se ordenasse o esmagamento desses enclaves ante as audiências do país e do mundo inteiro.

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Autor:
Luís Filipe Silva