Conceito de Luís Filipe Silva

Ficção Científica, Fantástico, Surrealismo, Realismo Mágico, Terror, Horror, Ciberpunk e História Alternativa - e por vezes, se fôr de excelente qualidade, ainda fechamos os olhos a um certo Mainstream...

[Conheça o Manifesto]

Noveleta

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~ The Rodney King Global Mass Media Artwork ~

Os billboards ficaram completamente cobertos ao fim de uma semana. As estações de televisão e todos os jornais ficaram alerta para qualquer telefonema estranho, qualquer pacote suspeito, qualquer mensagem electrónica que mencionasse a situação numa perspectiva diferente. Reinou na cidade um ambiente de expectativa, como se todos aguardassem pela próxima jogada do adversário escondido.

E então, no fim da semana, na noite que marcava o encerramento da actividade de cobrir os cartazes, ainda as ruas não se encontravam no auge da animação, as coberturas entraram em combustão espontânea.

Segundo as testemunhas, o fogo iniciou-se com um brilho difuso nas coberturas, como os metais quando são aquecidos, tornou-se em seguida rubro, soltando fumo, e estas começaram a arder. As chamas elevaram-se no ar, enegrecendo as fachadas dos prédios próximos e manchando de cinzas os sorrisos brancos das modelos dos cartazes vizinhos. As ruas encheram-se do cheiro de nylon queimado; e houve quem assistisse do cimo do monte de Santa Ana ao espectáculo de uma Los Angeles cheia de pequenos fogos, inúmeros fogos, como piras funerárias ou velas num relicário.
A frase, exposta, tinha mudado.

A BESTA BRANCA ODEIA-TE.
REVOLTA-TE, IRMÃO!

proclamava sobre um fundo cor-de-sangue. BRANCA destacava-se pela sua brancura ardente e feroz, ao passo que IRMÃO desenhava-se num negro imperativo e orgulhoso. Havia algo de errado com as letras; pareciam envoltas naquele nevoeiro que se forma no ar quando os dias estão demasiado quentes, distorcendo a imagem numa combustão virtual quase hipnótica; também elas não se mantinham fixas no papel, mas pareciam sobrepor-se à violência da cor sobre o qual se inscreviam.

Os motins a sério começaram nessa noite.

O Bureau também não tardou a agir. Enquanto o LAPD se atarefava por responder a todas as chamadas e controlar os focos de violência, e o Mayor fazia um segundo telefonema para Washington a pedir a intervenção da Guarda Nacional, alguns dos agentes procuraram descobrir o que tinha feito arder as coberturas. Duas hipóteses pareciam as mais prováveis: pequenas bombas incendiárias colocadas ou após o revestimento (mas como controlar o despoletamento simultâneo por toda a área, e como colocá-las lá ante o policiamento cerrado que agora cobria a cidade?) ou durante o revestimento (o que sugeria a acção de sabotadores e insurreicionistas, de certa forma uma expressão a que os agentes estavam mais habituados). O padrão de como o fogo se iniciara ia algo contra os métodos modernos de pirotecnia. Era quase como se... os cartazes tivessem reagido contra a ofensa de serem tapados.

A próxima investigação seria directamente aos billboards.

Não havia nada de estranho na estrutura - descobriram ao desmontar um dos mais proeminentes. O papel, contudo, de perto, parecia diferente. Não parecia verdadeiramente papel. Mais: encontrava-se fixado ao metal numa peça única, não no habitual puzzle de secções impressas que saíam das bocas das rotativas e eram então colados.

A explicação não tardou a surgir: não era papel, mas uma película orgânica quimicamente reactiva, que mudava de cor consoante certos estímulos químicos.

Os estímulos, descobriram a seguir, eram provocados pela fina camada de nanomáquinas que a infestava.

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Quer o laboratório quer o armazém onde a estrutura se encontrava guardada foram sujeitos a desinfecção criteriosa. Os técnicos foram colocados de quarentena, até se descobrir o efeito das máquinas moleculares no tecido humano. Era a primeira vez que a nova tecnologia, desenvolvida no confortável e longínquo segredo das bases militares situadas no coração da Antárctida, se encontrava disseminada pelo território nacional, deixando a população à mercê dos seus desígnios, todos os milhões de uma metrópole furiosamente activa e com ligação aérea para todos os lugares do mundo.

O Bureau ficou em pânico. Seguiram-lhes o exemplo o Exército, a CIA, o Gabinete do Presidente, e todos os experts de Nível de Segurança A a quem era transmitido o segredo.

Fizeram-se exames aleatórios à população - com a desculpa assumida nas empresas e nas escolas de que era necessário precaver contra um surto epidémico internacional -, e também aos prédios onde se encontravam os billboards - embora fosse difícil explicar (nem sequer tentaram) a presença de homens envoltos em fatos de aspecto espacial a recolher amostras dos tijolos das fachadas. Os exames resultaram negativos, bem como os efeitos presenciados nos técnicos detidos para quarentena. As nanomáquinas pareciam actuar somente dentro do espaço restrito das películas artificiais; delas recolhiam o alimento e desenvolviam a actividade, que não parecia englobar a reprodução. Segundo os especialistas da Defesa Nacional, implicava um tempo de actuação curto e bem determinado.

Permitiu ao Bureau respirar de alívio, mas não por completo. Pois as principais questões não haviam sido respondidas. Quem andava a disseminar tecnologia de guerra com fins de insurreição civil? Como a havia obtido, em primeiro lugar? Respostas possíveis seriam terroristas, potências estrangeiras, inimigos infiltrados no próprio Governo, pactuantes com teorias do derrube da democracia. Seria um repetir da teoria conspiracionista de Oliver Stone, e o ataque a L.A. não passaria de um ensaio para o verdadeiro e culminante ataque a Washington? Seria uma distracção de algo maior e completamente diferente? E pior ainda: como tinha sido, afinal, levado a cabo? Quem controlava a mecânica das empresas falsas e das carrinhas que distribuíam panfletos na noite? Sem que as respostas fossem encontradas, ninguém poderia garantir que semelhantes ameaças não se voltassem a repetir.

A principal suspeita centrava-se num movimento racista anti-brancos. Os gangs de rua estavam fora de questão por que nunca teriam nem o dinheiro nem a tecnologia nem a paciência (mas principalmente o dinheiro) para uma investida àquele nível, que até envolvia anúncios nos meios de comunicação principais. Os factos apontavam para uma acção externa: segundo os resultados das análises aos panfletos que haviam sido enviados para Washington, a composição da tinta e do papel sugeriam a proveniência de França. Por outro lado, podia ser mais um indício enganador. Os agentes moviam-se em terreno perigoso, e sentiam receio de tomar iniciativas antes de discutirem com os superiores e estes consultarem os espiões da CIA que se haviam infiltrado pelos principais grupos terroristas do mundo.

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Autor:
Luís Filipe Silva