Nos meses do Sol Irado, surge um vento estranho, um vento mortífero vindo de norte, cujo toque gélido, diz-se, é fatal, capaz de imobilizar um homem no sítio onde se queda, fixá-lo na pose que apresentava quando fora apanhado, apagar, como se de uma chama frágil e indefesa se tratasse, a sua vida, a sua vontade. Esse vento, a que ninguém deu um nome, assobia furiosamente sobre os nossos telhados, num esgar súbito de dor quando as arestas afiadas do metal lhe rompem a pele etérea, obrigando-o a separar-se em dois. Sopra continuamente durante dias, e depois desaparece, tão sem aviso como tinha aparecido. E durante esses dias, durante essas horas de medo e de luta, encerramo-nos nas nossas casernas, cortando o contacto uns com os outros, mantendo-nos, no entanto, unidos e próximos da família, daqueles que habitam connosco o abrigo. Não é culpa nossa, o vento impele-nos. O medo impele-nos. Sob a ameaça, afirmamos a importância da família, negando os outros, negando o mundo. Procurando suportar o conhecimento daquela situação tão frágil, de podermos morrer de um momento para outro, sem que ninguém nos possa ajudar, sem que possamos ajudar ninguém. Rezamos para que não se oiçam os seus gritos, para que em breve os esqueçamos e se percam no meio dos restantes pensamentos atormentados, no universo das tarefas diárias. Rezamos por muitas coisas, tamanha é a nossa fraqueza. Eu, em particular, rezo para não ouvir o nome dela, quando o vento sopra; por que o nome dela é transportado pelo vento.
Llliiiiiiiisssssssssaaaaaaaaa...
- Homem, acorda! Estás a dormir em pé?
Era a chamada cavernosa de Pedro, o gigante de barba branca e tronco de rocha encarregado de sustentar a família nos seus ombros. Devias chamar-te Atlas, pensava eu frequentemente.
As mulheres agarravam os miúdos, encolhidas a um canto. Beijavam-nos metodicamente, num ritual automático e inconsciente, envolvendo os pequenos corpos num abraço desesperado; os seus lábios em concha molhavam os rostos dos petizes, como se dissessem Estás aqui Continuas aqui Ainda aqui estás. E as crianças, também elas indiferentes ao ritual, olhavam para cima. Olhavam sempre para cima, quando o vento soprava, defrontavam o inimigo nos olhos, mudas, imóveis, tremendo de medo, mas também de admiração. Quereis ser como o vento - escreverei eu, quando me encontrar num outro lugar, longe do centro dos acontecimentos, onde a memória se forma e o medo se esculpe -, quereis ser forte e intrépidos, percorrer espaços sem esforço, vergar montanhas à vossa passagem. E depois, tentava, eu próprio, imitar-lhes o gesto, mas deparava-me com o telhado negro tão próximo, a estremecer violentamente numa luta desigual. Deparava com a fina membrana que me separava da minha morte. Retornava o olhar à terra.
Havia um estranho silêncio no meio de tanto estrondo, uma ilha de acalmia e escuta devota que era o nosso núcleo, a nossa caserna de três ou quatro divisões abertas, o nosso pequeno espaço desprovido de privacidade como o mundo ao nosso redor era desprovido de vida. Um silêncio que alguns, os menos resistentes, tentavam destronar com ditos jocosos e gargalhadas apressadas, nas suas vozes agudas e incertas a denunciar o pânico que sentiam. Mas a situação era demasiado poderosa para permitir distracções, era demasiado constrangedora para que tivéssemos outra alternativa a ficarmos sentados, imóveis, mudos como animais durante a tempestade.
E o Sol Irado despejava sobre nós a sua fúria inclemente. O globo de sangue penetrava pelos painéis tapados, infiltrava-se nos orifícios de vigia, colorindo de fatalidade e angústia a pele alva dos pequenos, os beijos das mães, a respiração lenta dos homens. Concentrando todo o combustível no esforço desesperado de manter o habitáculo minimamente quente, só podíamos destinar uma porção ínfima à iluminação - e assim, a luz daquele astro inchado, daquele gigante vermelho, baptizava-nos com o seu estranho sacramento.
- Homem, acorda, já te disse! Temos coisas a fazer.
Era tempo de agir, guardar a alma num recanto da mente e conceder a palavra ao corpo. Agir, metodicamente, como uma mãe que beija o filho: mas nós beijávamos a vida, com fervor, beijávamo-la em nome de toda a comunidade. Com colas orgânicas, fibras de autómatos celulares, pastas de nanobôs, ou com a eficiência simples do oxiacetileno, remendávamos as finas e quase invisíveis fracturas na cerâmica das paredes, os pontos de fadiga no metal. Encontrávamos as falhas com instrumentos gastos pelo uso: as nossas mãos, na maior parte das vezes, mãos nas quais assentava a segurança da família, mãos que tinham consciência - quase própria - da responsabilidade que carregavam. E depois confirmava-se com os outros instrumentos, os de medição, quando era possível, quando havia tempo. Nem sempre havia...
Durante o trabalho, alguns dos homens murmuravam "Está quase, está quase", mas não se referiam ao trabalho. Era o vento que estava quase a passar, os dias de reclusão e medo. De olhos vidrados na superfície monótona da caserna, efectuavam a reparação devotadamente, consertando fracturas ou afixando um painel extra contra a parede de leste porque o vento parecia soprar mais fortemente desse lado. Nos seus murmúrios inconscientes encontrava-se a récita calada de todos nós. Estava quase. Mais um minuto, outro minuto, outro minuto ainda; mais uma hora, outra hora; mais um dia. E depois o mundo voltaria a adormecer. Embora continuasse desprovido de vida, continuasse gelado e infinito, não nos atacaria mais, poderíamos pisar a sua superfície e escutar o seu sono.
O pior era que ficavam intactos - contaria eu, com a minha locução literária, se isto não passasse de ficção, de um sonho fantástico. Se não ficassem intactos, talvez o medo não fosse tão grande, talvez conseguíssemos aguentar. Mas nada se estragava, neles. As suas mãos, erguidas a meio do corpo, eram tão naturais na sugestão do gesto incompleto, com as pregas de pele e carne ao redor dos dedos, e os cabelos deitados como se atingidos por uma brisa suave. As roupas, delicadamente traçadas, ocultavam a textura do tecido na riqueza das rugas naturais e dos vincos provocados pelo uso e pelo movimento. E nos seus rostos abrigava-se a mistura dolorosa da consciência, resignação e detalhe. O detalhe que só uma tecnologia superior conseguiria produzir; mas não fora necessária uma tecnologia superior, nem a persistência de um artista meticuloso. Só fora requerido um preço, o maior que se pode pagar. E então, as mãos tinham parado, os corpos tinham parado, o tempo tinha parado para aquele jardim de estátuas, cercadas pelos restos de uma caserna derrotada. O jardim eterno das flores da memória. E não podíamos sequer tocar nos dedos congelados, nas bochechas que o sol mantinha coradas. Não podíamos acariciar as pétalas daquelas flores, com receio de danificar a sua forma, de derrubar a estátua que, sonhávamos, retornaria à vida, retornaria à vida.
Se tivesse insistido, se a tivesse convencido a ficar na minha caserna, daquela vez... se tivesse sido forte e derrubado a sua determinação em ficar junto da família. Se a tivesse amado o suficiente. Os se's tombaram da minha boca para o ar frio, cristais de impossibilidade, e o vento levou-os, levou consigo o desejo e o arrependimento, e espalhou-os pelo mundo, encheu com eles o planeta desolado, tornando-o em pedra, em estátua, em testemunho eterno e silencioso.