Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


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12 Fevereiro 2023

Para que serve o «Cânone»? Não, não questiono a necessidade de haver obras célebres, porque todos precisamos de referências, de pontos de encontro, nem que seja para melhor nos desentendermos, mas, sim: para que serve a edição da Tinta da China, assim denominada? E porque motivo (que não o provocativo para chamar a atenção e ganhar uns cobres - falo de motivos literários legítimos) teve este título? Se a própria introdução avisa que «(...) não vale a pena procurar nele o cânone da literatura portuguesa», não seria mais apropriado chamá-lo «Não o Cânone»? Mas, se o é, porque é o nome que lhe deram, será esse fantasmagórico cânone o dos autores de quem aqui se fala, ou os autores que aqui daqueles falam? E quem os escolheu, a uns e a outros? Menos claro: a quem se destina o livro? Para leitores que deviam conhecer, à partida, todos os autores aqui debatidos? Não terá sido para descobri-los que, precisamente, esse leitor terá adquirido o livro? E porque motivo somos lançados, em certos episódios, no meio da selva, em contra-insurreições de guerrilha antes de conhecermos sequer os lados e os ideais? Afinal, havia guerra? A importância de Herculano é medida pelo que Teófilo pensava dele? E porque há-de ser Teófilo uma autoridade nessa matéria? Não convém perceber, primeiramente, quem foi Herculano - o que comia, o que vestia, se arrotava após a ceia? Que documentário ignorámos, que podcast nos passou ao lado? Ficaram-se as orientações editoriais pelo caminho? Não merecia o Jorge de Sena melhor sorte - uma primeira introdução à sua obra e preocupações, antes de ouvirmos as suas lamentações pela presumida falta de reconhecimento em vida? E defendê-lo com excertos dos seus textos, que o artigo sobre Espanca, apesar de resvalar para igual pecado, ao menos aplica como redenção? Sejamos justos: porque não usar textos de todos estes autores, juntá-los no palco, conceber um livro polifónico, apaixonado, em que cada qual defende, como sabe e pode, o seu talhão? Faz sequer sentido discutir as indiferenças coevas de obras que sobreviveram à morte do autor, sabendo que de outras, talvez então populares, não se fala? (Fernando Namora, anyone?) Se quaisquer discussões sobre cânones pretendem criar mais perguntas do que respostas, eram estas as perguntas que queriam despertar? E para concluir, podemos, por favor, ter um livro apenas com artigos do Miguel Tamen, dos poucos que, aqui, brilharam como pérolas - infelizmente breves - de equilibrismo entre sabedoria e sensatez, articulando perguntas difíceis e essenciais sobre a literatura, e alguns dos seus atletas, com a leveza aparente de que só os mestres são capazes?

capa do livro

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28 Janeiro 2023

Eis a primeira resenha do ano, numa leitura que não despertaria interesse, se não tivesse escutado uma palestra do autor no último festival de FC em Avilés. Obra e criador são dois seres irmanados, mas não realmente gémeos, sendo a primeira fruto de um necessário compromisso entre vontade e capacidade, uma negociação de caminhos, e o segundo moldado por tudo o que se lhe impõe, como a sociedade, a condição humana, a vida. E contudo, ditadores e outros quejandos sempre tenham procurado calar a obra pelo amaldiçoamento de quem a fez, com a habitual justificação de uma pureza do pensamento (técnicas apropriadas entretanto pelas polícias colectivas dos supostos bons costumes, e de quem lhes dá ouvidos e autoridade). Que a associação com ditaduras tenha sido tão imediata revela, talvez, o cancro óbvio que assombra a Utopia descrita em Ceifador. Tradução de uma série juvenil (por moda, dizemos agora jovem-adulto, mas o que é este, realmente, senão um adulto pleno que ainda não se cansou de o ser?) em que os seres humanos vivem para sempre, por obra e graça de uma medicina milagrosa que tudo repara (cair de um arranha-céus é tão irrelevante quanto fazer um golpe no dedo, e até se desperta com memórias intactas!), arriscando, portanto, esgotar os recursos da Terra e encher o planeta de membros desta espécie teimosa. A solução para o excesso populacional? Ora, é tornar as pessoas voluntárias à força no jogo da extinção pessoal - por outras, palavras, matá-las. Entra em cena uma casta de assassinos que dita o fim dessa medicina milagrosa capaz de recuperar o corpo, nas vítimas por si escolhidas. Agindo sob um sistema de quotas, esta premissa faria as delícias de qualquer assassino em série - ou não, talvez a obrigação transformasse um hobby em trabalho, tirando-lhe o gosto... Os praticantes dessa Ordem chamam-se Ceifadores, e a prática da ceifa, uma colheita - opções de tradução adequadas e que ficam na memória. A História atribuiu-lhes imunidade praticamente total, pois matar ceifadores é punível com uma colheita imediata, a não ser que estes se suicidem. Mas até isto acontecer, são obrigados a ir matando sem piedade.

O que dizer desta premissa? Para começar, é uma interpretação curiosa, e bastante cínica, dos futurismos juvenis que se multiplicaram nas últimas décadas, apresentando-nos o que LeGuin chamaria de utopia ambígua: a perfeição com odor fétido. É um futuro particularmente sádico, e possivelmente traumatizante, pois a morte de um amigo ou familiar, se causada por mão humana e escolha deliberada (em vez de ser uma característica inevitável da vida), deixaria marcas na sociedade - aliás, o pavor de quem se cruza com um Ceifador é repetidamente descrito. Estamos perante um custo obrigatório sem contrapartida imediata, apenas uma abstracta promessa de eficiência, tal como o pagamento de um imposto... sendo o causador da morte conhecido, caminhando impune e em liberdade, e capaz de vingança se contrariado. Um preço demasiado alto - parece-me - para a aceitação de uma existência imortal, criando elites que a negam. É de admirar que não se ergam vozes dissidentes (ou ficou a revolta relegada para os próximos episódios?).

O enredo centra-se na educação de dois jovens escolhidos para aprenderem estas artes, uma vez que se ingressa nas fileiras por convite e mérito; ambos terão de sobreviver às provações daquela vida e engolirem a mentira - que colher é um acto humano e justo - que sustenta a sociedade. Eis a consequência óbvia: a actividade atrairia psicopatas, que aqui se retratam como sendo os Ceifeiros que colhem vidas alheias com prazer e para ganhar poder e fortuna - e o fazem também de forma colectiva, em espaços públicos, como forma de espectáculo. Perversamente, o livro faz-nos crer que este acto é menos humano que a eliminação do indivíduo isolado, como se esta escolha não se entenda mais pessoal. E tanto mais perverso é, que as mortes acontecem de forma brutal, com dano físico, em vez da pacífica eutanásia adoptada em Soylent Green.

É impossível concluir a leitura sem sentir um gosto amargo, não obstante a simplicidade da escrita que faz passar páginas com facilidade. Shusterman sabe o que faz, sendo este o primeiro de uma trilogia. Numa era em que tanto se fala de saúde mental, esperemos que os habitantes deste mundo encontrem paz de espírito.

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