Exposição Prolongada à Ficção Científica  

   um blog de Luís Filipe Silva


09 Março 2021

Não obstante a possível, e cruel, leitura política e social do ditado «De pequenino se torce o pepino», infelizmente é normal encontrarem-se evidências da sua pertinência em citações como esta (negrito nosso), em que se comenta uma condição cultural tão peninsular quanto infeliz, e que pode estar (estará, certamente) na raíz do desapego de longa data, também da literatura portuguesa, com os temas do Fantástico:

Estas publicaciones también se popularizaron en España, pero caracterizadas por un tono más educativo y moralizante que las que se imprimían en otros países europeos. Cuando en la península se publicaba La Educación Pintoresca (1857-1859), en Francia nacía La Semaine des Enfants, un semanario parisiense con leyendas y cuentos de hadas que contrastaba con las historias aleccionadoras hispanas. El realismo español había enraizado en todos los ámbitos literarios y la literatura infantil y juvenil no iba a ser una excepción; de hecho, la mayoría de los escritores que se ocupaban de ella lo hacían con fines claramente instructivos. Los mundos fantásticos poblados de hadas y as medievales no tendrían un eco destacable en sus historias hasta finales de siglo.

Pato, Breve Historia de la Fantasía, p.81, Ediciones Nowtilus, 2019.


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07 Março 2021

Na entrevista de Jonathan Carroll à Locus de Março, o autor refere de passagem a decisão crucial, no início de carreira, em que aceitou o desafio da esposa para passarem um ano na Europa como professores, mas que, para tal, sacrificou uma boa oferta de emprego e a sua conveniência pessoal.

That was 44 years ago. If we hadn't gone, I would have probably been a college professor, all that junk. Not that it would have been an unhappy thing. Just different.

E no entanto, é precisamente nas diferenças que a felicidade mora. Nem todas as vidas alternativas suspiram com saudade de outras escolhas.

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08 Dezembro 2020

Brown e Reynolds formam equipa para escreverem a quatro mãos «Dark Interlude», publicada na Galaxy de Janeiro de 1951 [link]. Uma história em que predomina o tema da relação do sul estadounidense com as questões da raça, mas que inclui também outro, mais dissimulado, sobre a supressão da agência feminina, se considerarmos que nunca se chega a conhecer a verdadeira opinião da esposa da vítima (uma vez que, nesta fase final, a rapariga apenas nos surge através do olhar do irmão). De passagem, um mini-enredo que envolve viagens no tempo, como possível justificação para a ingenuidade do protagonista (bem como para a presença desta narrativa numa revista de FC). O título em questão parece remeter uma outra referência, mas a mais óbvia (o capítulo de Sleepwalkers de Koestler, assim intitulado e que designa a Idade Média, a idade das trevas) não é defensável, pois esta obra só teria edição nos EUA em 1959.

O conto de Brown e Reynolds surgiu entre nós pouco depois da sua publicação original, na antologia O Que É a «Ficção Científica»? (org. Victor Palla, Ed. Atlântida, 1959) - como possível resposta a esta pergunta -, sob o título «Interlúdio nas Trevas» (tradutor anónimo, possivelmente o próprio Palla), e logo a seguir em Nove Novelas de Antecipação Americanas (Estúdios Cor, 1964), sob o título «Interlúdio Sombrio» (tradução de Rafael Alberty, e provável organização do mesmo - afirmação que carece de uma análise mais aprofundada). A repetição de escolha do mesmo texto em duas antologias portuguesas de FC é invulgar para a época e inclusive para edições tão próximas temporalmente, pois o racional comercial de uma editora passaria por apresentar material inédito e assim justificar a aquisição pelo leitor. Ainda que o organizador de Nove Novelas desconhecesse a existência da antologia anterior, e partindo do pressuposto que ambos os antologiadores trabalharam com liberdade de escolha (por outras palavras, sem obedecerem ao índice de uma edição estrangeira de referência), é possível fazer-se uma leitura de tal coincidência - que as temáticas abordadas pelo breve conto ressoaram no inconsciente estético dos editores, fazendo-os acreditar que se tratava de uma boa oferta ao público. Talvez a abordagem humanista, centrada no ser humano e não na tecnologia; talvez a crítica aberta às imperfeições do nosso tempo, em contraposição à sociedade utópica de onde provém o viajante temporal; talvez o comprometimento moral da autoridade, que aquiesce e cala - e portanto, legitima - o crime, tal como percebido no paradigma social luso da época; talvez, por fim, simplesmente a questão racial que se destaca. Subjacente à escolha manifestada, encontramos uma percepção subtil do que a FC «deve ser», ou «deve representar», já nessa fase inicial do género na nossa literatura, em aparente convergência.

(Referências - sempre - indispensáveis: Bibliowiki e ISFDB.)

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06 Dezembro 2020

Neste dia, prendas se oferecem. E melhor prenda não há, que Borges sintético mas infito.

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29 Novembro 2020

A cronologia não ajuda a defender a teoria fácil de que a evolução de um escritor segue os contornos e ritmos da sua vida, e que as ficções dadas à luz a cada ano serão portas de entrada, ou portinholas de acesso, para as suas cismas circunstanciais. Seria naturalmente mais simples considerar «Death of a Spaceman» (curiosamente, uma das poucas obras de Walter Miller traduzidas para português) como o canto de cisne de um autor consagrado se surgisse, qual singela estrela cadente, no final de vida deste, ou durante o período de transformação radical do género a que se dedicou e em que poucos anos firmou nome, antes de se apagar bruscamente. Mas 1954, o ano da publicação do conto na Amazing Stories, distava ainda meio século, para ele, do oblívio carnal a que todos estamos sujeitos, e vários anos da New Wave que supostamente alienaria autores e leitores incumbentes. É bem possível, por outro lado, que em Miller se reflectisse já o cansaço, ou o silêncio iminente a que se remeteria em breve, após deixar escassa obra e um rol finito de preocupações temáticas - ele, que pode ter sentido O Cântico para Leibowitz (1959) como a sua grande saída de palco, aquele fechar da cortina que muitos consagrados temem reabrir (como gostamos, os críticos, de apropriar-nos da mente alheia de quem escreve!). Contudo, a explicação mais lógica poderá encontrar-se na tessitura do próprio género, duas décadas distante do rocambolismo ingénuo da pulp fiction, enegrecido pelas experiências da Segunda Guerra e de Trinity, um mundo no qual os autores, regressados heróis, enfrentariam as ameaças mais ignóbeis das hipotecas para pagar, dos matrimónios cansados, dos públicos indiferentes - um género entretanto capaz de admitir narrativas saudosistas e revisionistas, como «The Green Hills of Earth», como se convictas do futuro inevitável que ilustravam ou resignadas ao facto que o resto da sociedade não era capaz de ver tão longe e nitidamente quanto elas. Assim se entenderá uma ficção sobre um espaçonauta em fim de vida, consumido pelo cancro, navegador incansável da rota Terra-Lua até a reforma pôr um fim aos seus dias de glória, mantendo uma postura estoica para a família que orbita à sua volta, fazendo as suas últimas despedidas - excepto do neto Ken que o desilude, quer por se recusar a seguir-lhe as pisadas quer por chegar demasiado tarde naquele dia -, feliz apenas num derradeiro instante em que ouve partir ao longe o cargueiro espacial, sem ele mas sempre consigo. Mas estamos perante um narrador pragmático que recusa dramatismos e encara a situação com a ironia necessária («The dead must humor the mourners, he thought, and the sick must comfort the visitors. It was always so.»), uma pessoa do seu tempo, um homem que fez o seu trabalho e agora vive a sua morte, e na proximidade da morte, está consciente de que tomou as decisões que quis, mesmo que estas não lhe tenham trazido fama nem fortuna nem um legado que lhe sobrevivesse («A man makes his own soul, but it dies with him, unless he can pour it into his kids and his grandchildren before he goes. I lied to myself. Ken's a yellow-belly») - legado que nem soube garantir como um homem o faria («I'm sorry I can't get out of this bed and take a belt to my daughter's backside for making a puny whelp out of Ken»). Paradoxalmente, neste conto encontramos a elegia de si mesmo, e de todo um modo de ser, cujo sabor estranho se tornará intragável com o passar dos anos: a visão de um destino manifesto exclusivo dos homens - como se não fosse também propriedade da outra metade da espécie humana -, de um «fazer» acima do «existir», de noções de dever e sacrifício herdeiras dos mais antigos mitos heroicos com os quais estabelece uma relação filial improvável. É uma ficção sobre soldados para gerações que desconhecem a guerra e por isso rejeitam a estrita divisão de papeis sociais, a subjugação da identidade pessoal a um objectivo maior, o esforço necessário de uma civilização que quer sobreviver. O velho astronauta morre sem a presença do novo mundo, do neto que chega atrasado, ao qual passar testemunho.

A ficção científica que conhecemos forjou-se neste cadinho cultural. Que ficção científica teríamos hoje, se os seus autores não tivessem conhecido a Primeira Guerra Mundial, nem a Segunda, nem o Vietname, ou não fossem ocidentais? Se não houvesse tantos engenheiros e cientistas em tais fileiras, assombrados com o impacto que o seu trabalho provocava no mundo, para o bem e para o mal? Teria abandonado o parentesco com a utopia? E sem ela, teríamos sequer chegado à Lua?

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22 Março 2020

No Rescaldo das Preocupações virais da primeira década do século, uma antevisão sobre a dicotomia liberdade/responsabilidade social:

a tendência tem vindo a propagar-se pelas culturas orientais, onde a dimensão e densidade populacional explica a quantidade de medidas de controlo do nível de saúde geral da população, as quais têm sido alvo de críticas a nível mundial. Segundo Deerk (Antuérpia, 12PCI), «contra a democracia fala a higiene, ou o que passa por higiene, de um povo ou uma cidade ou um estado; defensável? Veja-se o caso de Hong Kong, onde os monitores individuais de saúde estão em constante vigilância pelo Estado e sintomas que possam indicar uma das doenças colocadas em lista negra, obrigam o indivíduo a apresentar-se para check-up imediato e iniciar o tratamento, podendo ser preso caso recuse e mantido sob custódia até terminar o processo de cura.» Ou como diz Silverberg (Bagdad, 16PCI), «o corpo deixa de ser pertença do indivíduo e é pertença do Estado – o indivíduo é neste caso ocupante indesejável e por vezes incomodativo (...) a cura, e logo estar vivo, torna-se uma sentença (...)».

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09 Fevereiro 2020

Is There Anybody Out There? Depois da velocidade de cruzeiro a 100 mil pés de altitude, sustida durante anos, este blogue voltou à atmosfera em Agosto de 2012, momento a partir do qual um balão se rompeu algures, sem dar notícia, e o desinteresse tornou-se hábito. É assim que nasce a apatia. Fica aqui esta tomada de consciência, nem que seja para apodar o respetivo mês no índice lateral, porque sem este saltaríamos no tempo. E pur si muove.

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